jSS^oimbra dovtora

M T0% HITTOLYTO %ATOSO

Em COI<S\íBTiA:

Na Typographia de F. França Amado. Editor. Anno MCMX.

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in 2010 with funding from

University of Toronto

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COIMBRA DOUTORA

Composto e impresso na T^pographia França Amado, Rua Ferreira Borges, n5 Coimbra

HIPPOLYTO RAPOSO

COIMBRA DOUTORA

PREFAQO DE JULIO DANTAS

LVMCM

COIMBRA

F. FRANÇA AMADO, EDITOR I9IO

Lf

Hic tnihi iucundam liceat traducere vitam : Hic mea, cúm moriar, molliter ossa cubent.

Ignacio de Moraes Conimbric<^ incomiii.

AO

ILLUSTRE POETA

SENHOR CONDE DE MONSARAZ

Hippolyto Raposo foi-me apresen- tado, ha cerca de um anno, pelo meu querido amigo conde de Monsaraz. o conhecia de nome e de leitura pelas suas chronicas do Diá- rio de Noticias, meias columnas de prosa máscula, simples, serena, termi- nante. O bello rapaz que o eminente poeta da Musa Alemtejana me apresentou, beirão robusto e enorme, de larga enver- gadura, pulso firme e rasgado e limpido olhar, era bem o auctor d'essa viril e nobre prosa. Impressionou-me desde logo a sua forte e original figura, que a batina e a capigôrra negra da Universidade tor- navam mais gigantesca ainda. Cheio de energia e de saúde, de virtude e de bon- dade, com a tenacidade tradicional dos

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beirões, dispondo soube-o logo de qualidades notáveis de investigação e de trabalho, estava ali, sem duvida, um ho- mem destinado a triumphar e a vencer. Não me enganei. Pouco tempo depois, soube que Hippolyto Raposo concorrera aos Jogos Floraes de Salamanca e que á sua Memoria sobre tradições universitárias de Coimbra fora adjudicado um dos pri- meiros prémios. E essa memoria que hoje apparece a lume sob o titulo suggestivo de Coimbra Doutora, constituindo simul- taneamente a revelação de um escriptor e de um erudito.

conheci o manuscripto da Coimbra Doutora quando, depois de premiado, o auctor teve a gentileza de m'o enviar. Apesar de ter sido convidado para fazer

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parte do jury e de ter acceitado a honra d'esse convite, não pude mais tarde, pela imposição de deveres officiaes, comparecer na residência do Excellentissimo Bispo Conde, em Carregosa, para onde fora convocado o jury portuguez, não tomando, por conseguinte, conhecimento de nenhum dos trabalhos apresentados ou sequer dos nomes dos seus auctores. Não foi, pois, com o meu voto que Hippolyto Raposo obteve o prémio que o distinguiu : mas, se estivesse presente na reunião da Car- regosa, ter-lh'o-hia dado, porque os tra- balhos probos e honestos não são infeliz- mente vulgares entre nós, e a Coimbra Doutora é, antes de tudo, um documento de extrema probidade litteraria. Poderá alguém, mais exigente, contestar á prosa

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de Hippolyto Raposo esse caracter de forte individualidade que em geral aponta com os primeiros cabelios brancos ; o que ninguém com justiça lhe negará é o tem- peramento de escriptor de raça, a concisão e a nitidez da expressão verbal, a sobrie- dade máscula da estructura litteraria, e esse singular poder de evocação e de pintura que é o segredo dos grandes artistas e que constitue a qualidade fun- damental do escriptor.

N'uma geração coimbrã de poetas, Hippolyto Raposo representa a pondera- ção, a reflexão, a sobriedade, a prosa. Ao passo que Alberto Monsaraz e António de Monforte, os moços e admiráveis poetas do Romper d' Alva e do Tronco Reverde- cido, herdeiros do velho lirismo coimbrão,

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blasonam da serpente d'oiro sobre campo verde, de Camões, o auctor da Coimbra Doutora segue a douta tradição dos pro- sadores, tem hábitos benedictinos de investigação e de cultura, uma notável disciplina mental, um espirito preciso, sóbrio e pratico, uma placidez fleugmatica de processos que não se compadece com as grandes obras de imaginação e de paixão. O primeiro livro de Hippolyto Raposo revela precisamente as suas ten- dências litterarias, as predilecções do seu espirito, o género de trabalho em que o seu forte e real talento se compraz. É mais do que uma notável revelação; é uma grave promessa. Nas paginas doesta curta Memoria apresentada ao jury de Sala- manca está o gérmen d'um historiador.

VXI

Que a vontade firme e a nobre energia do moço e illustre homem de lettras perse- verem no estudo e no trabalho, sem os quaes nada se obtém de durável e de profundo, e que o ouro da sua prosa possa ainda servir para a cunhagem eterna de grandes paginas de restituição e verdade.

JuLio Dantas.

GEERALL STUDO

GEERALL STUDO

Fez primeiro em Coimbra exercitarfe O valeroso officio de Minerua, E de Helicona as Musas fez paffarfe A pifar do Mondego a fértil herua : Quanto pode de Athenas defejarfe Tudo o soberbo Apolo aqui referua : Aqui as capellas da tecidas d'ouro, Do baccaro, & do fempre verde louro.

Camões Lusíadas.

O Estudo Geral que Dom Dinis fun- dara em Lisboa, a instancias dal- guns abbades e priores e á custa das suas rendas, tendia a dar ex- pressão definitiva á nacionalidade portuguesa. Consagrava a autonomia mental quando a politica estava firmemente assegurada e garantia maior consistência aos direitos reaes que o poder ecclesiastico vinha disputando com ardor e violência.

Cansado de luctas, aquietara-se o castelhano e na linha da fronteira que a espada aífonsina

Coimbra doutora

limitara pelo oriente, erguiam-se castellos e atalaias vigiando o horizonte para terras de Espanha.

Deante dos bandos conquistadores inimigos do Propheta, ia a moirama levantando as ten- das, a oscillação constante dos dominios do sul dava ao reino os sobresaltos dum acampa- mento até ao termo da posse do Al-Gharb que abria o mar ao destino das navegações.

De longe trazia Coimbra a fama das esco- las cathedralicias nascidas, segundo parece, da acção convergente do Conde Dom Sisnando e do Bispo Dom Paterno, logo após a reconquista christã da cidade, em meados do século xi, no tempo de Fernando Magno.

No principio da monarchia, por extensos caminhos, iam ao centro da Europa estudantes portugueses procurar a cultura, pensionados pelos morabitinos de el-rei Dom Sancho, e por foram illustres muitos delles que a partir do século XIII viviam em Bolonha, e não sabe- mos agora se o enthusiasmo pela sciencia arras- tou alguns á rua du Fouarre, em Paris, a ouvir deitados em molhos de palha, os mestres ensi- nando das janellas baixas.

O certo é que Portugal oíferecia para o esplendor da primeira renascença uma contri- buição gloriosa.

Coimbra doutora

Fernando de Bulhões, nobre e rico, partia do convento de Santo António dos Olivaes para a Itália, embrulhado no burel franciscano, em busca da perfeição christã, professando de- pois theologia mystica por Montpellier, Pádua e Tolosa e obrando prodígios, como os velhos theurgos syrios. . .

Na memoria do povo revive ainda, pallida de seis séculos, a figura confusa de demónio e santo, sábio e bruxo, de Frei Gil de Santarém que foi, quando moço, discípulo em medecina de Mendo Diaz, depois do seu regresso de Paris, reinando Sancho I.

Gil Rodriguez vivia com seu pae que era do conselho de el-rei, seu mordomo e alcaide-mór da cidade de Coimbra, sede da corte e onde havia mestres das boas artes e sciencias.

Rico de benefícios ecclesiasticos de que o favor real o cumulara, veiu-lhe a ambição de completar os estudos e foi caminho de Paris ouvir os sábios.

Próximo de Toledo, o demónio vem propôr- Ihe um pacto e oíferece-lhe conduzi-lo ás covas para depois de bem instruído na arte magica, curar todas as doenças e o moço acceita alvo- roçado a seductora promessa.

Abjurava da de Christo em que nascera e fora ordenado de presbytero, por um docu- mento escrito com sangue do próprio braço

Coimbra doutora

entregava a alma ao demónio e quando chegou a Paris, logo a universidade o graduou, que nunca ali fora visto tam agudo ingenho.

Certa noite em que estudava com fervor, appareceu-lhe um cavalleiro armado, aconse- Ihando-o a mudar de vida e, após sucessivas visões, resolve abandonar a sciencia profana e tomar o habito de S. Domingos em Falência (Espanha), aquelle negativista atheu da escola de Paris.

No mosteiro aonde fora procurar a paz, per- seguiam-no ainda mais as tentações de que viria liberta-lo a oração pelo auxilio da Mãe dos Peccadores, a cujos pés veiu cair um dia o pergaminho ensanguentado do juramento toledano. . .

Agora voltava o frei a Paris, mas pobre e humilde, sem o séquito lustroso doutróra, o or- gulho feito piedade e amor da sciencia divina de que por más artes de Lúcifer andou arre- dado e quasi a cair em eterna perdição (i).

Dante cantou o philosopho Pedro Hispano como um dos maiores doutores do tempo, au- ctor das Summas aristotélicas que illuminaram

(i) Frei Luís de Sousa, Historia de S. Domingos, vol. I, folh. 83 e segg. e Duarte Nunes de Lião, Descri- pção de Portugal, ed. 1610, pag. 77 e seg.

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a metaphysica medieval, servindo de cânon para o estudo das aries em quasi todas as uni- versidades europeias até ao século xvi e creando tal prestigio ao nome do nosso compatriota que o colleg:o dos cardeaes o elegeu papa com o nome de João XXI.

Do período prèuniversitario português vem ainda a tradição de Dom Pedro Alfarde, cónego regular, doutor parisiense e Dom Frei Álvaro Paes, discipulo illustre do Doctor Subtilis ( Joan- nes Duns Scotus), adversário de Santo Thomás em notáveis polémicas theológicas que determi- naram a perpetua rivalidade entre franciscanos e dominicanos.

Dom Dinis recebera o reino tranquillo e para o tornar prospero, não faltava ao neto de Affonso, o Sábio, fundador da Universidade de Salamanca, a necessária cultura de espirito.

A nacionalidade ia tomando consciência de si, trovadores e jograes diíFundiam o gosto pelas letras, despertando a rudeza do povo e dos nobres para quem começavam a vir pergaminhos de Paris e Roma.

A lingua, até ali rude como os costumes, saía rediviva dentre a confusão dialectal, deter- minada pela dissolução do latim, cuja rigidez fora sempre temperada ao calor do génio pe- ninsular.

Coimbra doutora

O sermo rusítcus ia longe, cada vez mais impróprio para a expressão de sentimentos de- licados que da Proença começaram a acordar os espiritos, adormentados das fadigas guer- reiras.

A corte vinham chegando trovadores aos bandos que a paz do reino convidava á vida dos castellos e a sua linguagem quasi commum a toda a peninsula, doce e maviosa, echoava brandamente, como um toque a despertar para uma era nova.

Os tabelliães e funccionarios que barbari- zavam o latim e imitavam nos instrumentos públicos as formulas dos foraes ao ouvirem o rei e os infantes trovar na lingua incipiente, esqueceram o velho costume, honrando na escrita a linguagem vulgar (i).

O rei que pelas concordatas nacionalizara a igreja, que em metro e rima fixava as formas indecisas do idioma, maravilhoso de harmo- nia e plasticidade promovia por todos os meios o progresso material do país e, creando as escolas de Lisboa, proclamava solemnemente a emancipação nacional.

O que seria essa universidade medieva nos costumes e vida, á falta de documentos, pode- mos conjectura-lo com alguma segurança pelo

(i) Âdolpho Coelho, Á Lingua Portuguesa, pag. 27.

Coimbra doutora

confronto com os das outras que na Europa tinham então fama de celebres e que para enviavam mestres os discípulos doutróra.

Instituição formalmente religiosa, hábitos e re- gra quasi monacaes que cinco mudanças em du- zentos e cincoenta annos mal deixariam radicar.

Alunos quasi todos pobres, acorriam das províncias com destino a sacerdotes e com a ambição das dignidades ecclesiasticas a que os graus académicos davam accesso, escure- cendo humildades de origem.

A nobreza desdenhava a instrucçao e um moço fidalgo jamais hesitou na preferencia pelas subtilezas das artes e meandros das glos- sas bolonhesas ou pelas sortidas de caça com trombetas a resoar, seguidos da falcoaria. . .

A cultura importava um sacrifício a que era humilhante entregar-se a gente bem-nascida.

Os escolares, filhos do povo em geral, trabalhavam para melhorar a condição do nas- cimento e punham nesse empenho o exforço desvelado de quem se liberta.

A estes, nem os cuidados do estudo lhes dei- xavam tempo de folgar, nem a Índole os devia incitar á turbulência que a humildade desap- provava e os hábitos de clérigo defendiam.

Numa desavença com a população do bairro, irritada com os privilégios excessivos dos esco- lares, queixavam-se os canonistas ao Rei-Justi-

IO Coimbra doutora

ceiro de que o conservador da Universidade lhes applicava penas das leis estranjeiras das Siete Partidas, em vez do direito que apren- diam dos mestres.

E pouco frequentes deviam ser estes confli- ctos pela condição da maior parte dos estu- dantes que a esse tempo seguiam os cursos em Lisboa ou Coimbra, embora a pretexto delles e por causas bem diíferentes, a Universidade se transferisse algumas vezes.

Os escolares leigos, em menor numero, viviam fora da clausura e usavam armas ao costume da época, provocando desordens, can- tando entre o povo, até ridicularizar os actos religiosos e parodiar a liturgia em tabernas e praças, como possessos de diabolismo feroz.

Dessa vidairada para que a condição escolar tem encontrado desculpa e até justificação, através dos tempos, chegando as concessões privilegiadas a alargar-se na tolerância dos costumes ha vestígios na poesia popular antiga e nas coUecçoes dos provérbios :

Estudante

Bargante

Chapéu d'alguidar

Com o sentido nas moças

Não pode estudar (i).

(i) Theophilo Braga, Historia da Universidade de Coimbra, vol. i, pag. 85.

Coimbra doutora ii

Para a fundação do Estudo Geral não coope- rou o alto clero, certamente ainda ferido das dissenções com a coroa.

Na supplica dos ecclesiasticos dirigida ao papa Nicolau IV para mandar a confirmação do Estudo estabelecido em Lisboa, inutilmente se procurará o nome de um bispo (*).

Todos elles defendiam os rendimentos das igrejas dos encargos que a Universidade lhes trazia e ao mesmo tempo em que procuravam combater a pretensão do rei eram os priores e abbades que se punham a seu lado, facili- tando-lhe o plano.

O pontífice respondeu benignamente e a bulia de Urbieto ( 1290) concedia ao Estudo de Lisboa ( Unwersitaíi Magistrorum et Scholarium Ulix- hon.) os primeiros privilégios apostólicos das universidades da Espanha (i).

No mesmo propósito e a conselho do papa, esse Rei-Trovador que tem na historia cinco séculos de gratidão, mandava ás auctoridades respeitar e proteger muito especialmente as coisas e pessoas dos estudantes, isentava-os de certos tributos, concedia-lhes foro privilegiado e a faculdade de elegerem annualmente os dois

(*) Vid. Nota A, no fim.

(i) Frei Manuel do Cenáculo, Memorias históricas do Ministério do Púlpito, pag. io5 e seg.

Coimbra doutora

reitores, conselheiros, bedel, officiaes, e de ela- borarem os estatutos organização tem demo- crática que é uma aspiração do presente e faz inveja a tantos séculos de distancia (i).

Numa serie de diplomas, providenciava Dom Dinis sobre a installação da Universidade em Coimbra, coutando a cidade para cima da Porta de Almedina, onde ninguém que não fosse estudante podia pousar, mandando fazer a eleição dos taxadores e regulando as horas do estudo pelo toque da ronda, três vezes, no sino grande da Sé.

Os proventos dos mestres (artes, cânones, leis e medecina) eram constituídos pelas talhas que os*estudantes pagavam, conforme os have- res de cada um.

Muitos dos que pagavam talhas menores, por sua pobreza, occorriam á necessidade do pão quotidiano pedindo esmola a cantar em verso, como mendigos vulgares, de terra em terra, ou recebendo o caldo á porta dos con- ventos para o que levavam a colher que subsiste ainda symbolicamente nos chapéus escolares dos estudantes de Sant'Iago de Gom- postella.

Em Santa Cruz de Coimbra, depois da mu- dança de Dom João III, davam-se diariamente

(i) Provisão de i5 de fevereiro de 1347,

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por sua ordem e intenção do fundador S. Theotonio, vinte e quatro rações cobertas a outros tantos estudantes pobres, com cujo auxilio muitos delles se graduaram, como refere o chronista da ordem (i).

Posteriormente, a irregularidade da alimenta- ção determinou a funcção académica de andar á lebre que consistia em visitar os amigos á hora das refeições, dando-se por achado e occultando a penúria do seu viver.

Quando Dom Fernando cuidou a serio da Universidade, teve de mandar vir professores do estranjeiro, cuja recusa a ler em Coimbra justificou a transferencia das escolas para Lis- boa onde se ficaram ensinando as sete vias da sciencia ou artes liberaes : grammática, lógica, rhetórica, arithmética, música, geometria e astronomia (triínum e quatrivium).

Por então alcançou o rei do papa Gregó- rio IX que na Universidade se dessem os graus de doutor e bacharel e se usassem as insignias respectivas (2).

(i) Dom Frei Nicolau de Santa Maria, Chronica dos Cónegos Regrantes de Santa Cru:^, vii, 64 e Theophilo Braga, obr. cit., tom. i, pag. 478 e seg.

(2) Frei Manuel do Cenáculo, obr. cit., pag. 107 e Leitão Ferreira, Noticias Chronologicas da Universi- dade, pag. i88 e seg.

CONQUISTA & NAUEGAÇÃ

CONQUISTA & NAUEGAÇÃ

Greçe seu mando, seus rreynos alargua per seus capitães na jente ynfiell o gram poderio d'mouros em bargua em gram quatidade per guerra cruell.

Leuando consigo a bandeyra rreall que nunca vencida se pode dizer pois he jnuencivel aquelle sinall

Do Cancyoneyro Geerall.

A lenda do mar tenebroso contivera em respeito durante toda a edade media, os povos do occidente. Ao longo das costas, contavam-se casos mysteriosos, retalhos de narrativas dal- guns navegadores do norte que se aventuravam ao largo e eram expellidos bravamente para terra, maltratados das ondas em fúria.

Conjecturas vagas de frades e astrólogos judeus, juntas a tradições de viagens pela costa d'Africa e memorias árabes que ficaram do

i8 Coimbra doutora

Almagesto, de Ptolomeu povoavam de so- nhos a imaginação das gentes do litoral.

Havia regiões distantes de que os mer- cadores traziam noticia com riquezas para a Europa.

A ambição dos príncipes conquistara Ceuta, era o primeiro passo da expansão mariíima apenas se mudaria de rumo, e a segui-lo por toda a odysseia do século xv, se foi dando satisfação ao anseio de penetrar o mysterio do Atlântico, devassando-o a preço de vidas.

Nos lares quietos da província, os que fica- vam iam rezando cada noite por aquelles que andam sobre as aguas do mar. Portugal era um país marítimo logo no nome . . .

A mesma bandeira que se erguera em Ourique sobre os hombros de Affonso Henrí- quez e nos muros de Silves, coroava os gothicos da Batalha num dia de victoria, subia aos mastros das caravellas das mãos do Infante de Sagres, atravessava trópicos e equador até dominar o infinito dos mares e a terra sagrada do Ganges onde haveria depois vice-reis a arriscarem filhos por cada pedra duma for- taleza.

Toda a nação se alvoraçava. Nas rotas d' Africa, os marinheiros tinham de temer os feitiços das sereias ou, debruçados das

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naus, ouvir gemer as almas-de-meslre, penando na solidão dos mares.

A corte de Dom João I aonde a rainha inglesa viera reavivar as tradições normandas, era no século xv um simile das do tempo da Tavola redonda: nos serões do paço liam-se com enthusiasmo a Demanda do Santo Graal, as novellas de Galaa^ e Merlim e sobre o espirito dos cavalleiros e nobres, as figuras lendárias da idade media tinham a suggestão que sobre os capitães da índia viriam mais tarde a exercer os heroes de Plutarco.

Aquella loira rainha que entrara tam fria- mente na corte portuguesa, viera purificar-lhe a atmosfera moral com a virtude do seu exemplo e pelo prestigio que lhe ganhara o seu amor aos princípios da honra, conseguiu educar milagrosamente uma sociedade dis- soluta (i).

A transferencia da Universidade para Lis- boa trouxera-lhe uma difficil crise económica, quando as igrejas lhe retiraram as rendas. A primitiva organização autónoma foi desre- speitada logo por Dom João I pela nomeação dum Provedor e Recebedor que sempre tinha sido eleito pela collectividade.

(i) Júlio Dantas, Outros tempos, pag. 3g e seg.

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Dom AíFonso V, nomeando professores livre- mente, experimentava e vencia a hostilidade dos escolares, lesados nos antigos direitos de eleição.

A tendência para a absorpção politica foi-se alargando a todas as instituições nacionaes e a perda da autonomia corporativa da Universi- dade começa nas medidas legislativas de Dom João II que lhe tirou o direito de asylo e nas de Dom Manuel que fez e mandou observar uns estatutos.

A situação angustiosa que a mudança de Dom Fernando determinara, veiu valer de muito a eleição do Infante Dom Henrique para o cargo de Protector que soube honrar dignamente.

Installou as escolas em casa própria, fez-lhes algumas doações e alargou o quadro dos estu- dos introduzindo a mathemática (astronomia e cosmographia) e dotando a theologia com as rendas duma igreja de cada bispado, con- forme a bulia de Alexandre V, expedida a Dom João I.

As salas não eram as paredes monas- ticamente nuas, porque o Infante-Protector cuidou da sua decoração, mandando pintar um Galeno na aula de medicina, na de theo- logia a Santíssima Trindade, um pontifice na de decretaes, na de artes ( philosophia natu-

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ral e moral) um Aristóteles e na de leis um imperador.

A invasão humanista ia penetrando lenta- mente nos claustros, e na corte, depois de Dom Dinis, nunca houvera tam alto enthu- siasmo pelas letras.

As viagens do Infante Dom Pedro vinham revelar o grande movimento intellectual da Renascença que elle mesmo impulsionava, escrevendo o Tratado da Virtuosa Bemfeiioria e traduzindo obras latinas.

Imitando-lhe o exemplo, o condestavel Dom Pedro, seu filho, prosador e poeta, era um dos coUaboradores do cancioneiro de Resende e recebia do Marquês de Santillana o celebre Proemio, sobre a poesia provençal.

Dom Duarte, essa sombria figura de neuras- thenico, escrevia tristemente o Leal Conselheiro e o Livro da Ensinança e tinha no seu convívio intellectual e privado para o inspirar hora a hora, o doutor Diogo Aífonso Mangaancha que é neste periodo a mais perfeita expressão da renascença portuguesa c um dos mais extraor- dinários homens do seu tempo (i).

Com Dom Antam, bispo do Porto, cora o doutor Vasco Fernández, o Provincial de

(i) Theophilo Braga, obr. cií., ii, pag. 14 e seg.

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S. Domingos e Frei Gil de Tavira, foi o doutor Diogo Affonso na embaixada que, presidida pelo Conde de Ourem, Dom Affonso, o rei Dom Duarte enviou ao concilio de Basileia.

Chegados a Bolonha, o doutor Vasco Fer- nández, em consistório dos cardeaes, fez uma oração que mereceu applausos de todos, mas o assombro dessa embaixada e do concilio foi o auto de ostentação do doutor Mangaancha, na igreja de Sam Petronio, em que elle arguiu em latim contra os mais sábios bispos e cano- nistas do papa Eneas Sylvius (i).

A iniciativa deste doutor se deve uma insti- tuição nova que viria a trazer grande progresso aos estudos de Lisboa : era o collegio para escolares pobres.

Legava-lhe em testamento a sua livraria e a casa de habitação da beira de Ssam Jorge, prescrevendo tam minuciosamente o regimen económico, disciplinar e hygienico do collegio que era para se dispensar nelle outra inter- venção directora no futuro.

O Infante Dom Pedro, reconhecendo o desastre que para os interesses da sua cidade ducal representava a fixação definitiva da Uni- versidade em Lisboa, pretendeu crear outra

(i) Leitão Ferreira, obr. cit., pag. 35 1 e seg.

Coimbra doutora aJ

em Coimbra, durante a regência do reino em nome do sobrinho ( 1448 ).

Do seu intendimento com o bispo e cabido de Coimbra e demais dignidades ecclesiasticas, resultaram doações importantes para custear as despesas da nova Universidade, mas as intrigas que vieram a victimar o duque em Alfarrobeira, não lhe permittiram porventura a execução do seu plano.

Por uma provisão datada de Cintra, no primeiro anno do seu reinado. Dom Affonso V ordenava que se creasse o projectado estudo, porque «õb convinha haver no reino uma universidade.

Esta attitude que traduz um assentimento a uma aspiração do Regente, retalhado pouco antes pelas lanças do rei, leva a suppôr que Dom Aífonso cedo reconheceu a innocencia do tio e sogro, para o que não seria indiíFerente a influencia da rainha Dona Isabel, interessada naturalmente na rehabilitação da memoria do pae (i).

Ignoram-se inteiramente as causas que im- pediram o cumprimento daquella provisão e, a ter-se dado, diíferente sentido havia de seguir por certo a evolução mental portuguesa.

(i) Theophilo Braga, obr. cit., pag. 147 e segg.

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A universidade de Lisboa que nunca attingiu em qualquer periodo o brilho da de Coimbra, tinha caído em descrédito nos fins deste século e princípios do seguinte : os logares compra- vam-se descaradamente e a frequência ia dimi- nuindo pela febre das conquistas.

Os estudantes que iam para as aulas no Campo da Pedreira, no bairro d'Alfama, viam as naus, presas na amarra, fluctuando ao claro sol sobre as aguas do Tejo e sentiam que o caminho da gloria no dorso duma caravella seria mais arriscado, mas decerto mais curto do que segui-lo em annos de trabalho, ouvindo a Pedro Núnez lições do Tratado da Esphera e graduações do astrolábio e a Garcia d'Orta a leitura de Galeno.

Nem as noticias que constantemente traziam os da navegação e vinham alvoroçar os génios de aventura, nem a physionomia cosmopolita que Lisboa-mercadora ia tomando, de envolta com os terrores da peste que matara o professor Agostinho Micas (i625) deixavam quietação aos estudos que os mestres pediam fossem fechados e que em Coimbra se cultivavam com fama.

Nesse periodo de crise, a universidade por- tuguesa eram na realidade os collegios de Santa Cruz.

Coimbra doutora 25

Para a futura reforma de Dom João III, bastava dar feição legal e alargar a acção benemérita dos cónegos regrantes.

Ás escolas das collegiadas, dirigidas por reli- giosos de diíferentes hábitos, que com sorte varia existiram do principio em Coimbra, á sombra dos mosteiros substituiram-se os collegios de Todos-os- Santos para estudantes honrados pobres (os Pardos) e o de S. Miguel, a dentro da clausura de Santa Cruz, destinado a canonistas (os Roxos) que recebia os fidalgos abastados.

Nelles vieram ensinar depois da reforma de Frei Brás de Barros, os mestres Pedro Henrí- quez e Gonçalo Alvarez (grego e hebreu), o padre Dom Damião (artes), o padre Dom Dionisio de Moraes (cânones) e outros sábios que em Coimbra preferiram ao scholasticismo antigo, os methodos pedagógicos de Pedro R^jms (i).

Pelo mesmo tempo (1627) vinha de Miranda ler e commentar Homero no original e inaugurar as formas poéticas do quinhentismo, Diogo de Gouveia era convidado em Paris para a comissão de hellenistas que revia o texto dos Evangelhos da edição de Robert Etienne, e

(i) Chron. cit., part. 2, pag. Soo.

a6 Coimbra doutora

Damião de Góes, amigo intimo de Erasmo e o latinista André de Resende faziam pelas uni- versidades europeias a sua educação de altas humanidades.

Para Coimbra, aonde Dom João III se refu- giara da peste, vêem ensinar os bolseiros d'el-rei que estudavam em Paris, no collegio de Santa Barbara de que era principal Diogo de Gouveia. Logo após a trasladação, se constitue um núcleo de sábios portugueses e estranjeiros, contra- tados e attraídos por condições quasi atálicas, á ordem do rei, cuja grandeza e poder eram cantados em verso latino (i).

Muito solicitado, André de Gouveia partia a custo de Bordéus onde estava dirigindo o collegio de Guyenne para vir com outros pro- fessores illustres ordenar o das Aries, quando eram insufficientes os que havia á volta do mosteiro de Santa Cruz.

*4

(i) Ingenti veteres sumptu renovavit Athenas Eximiosque viros, quf sacra arcana revelent, Pontificum Decreta, et Legum enigmata pandant: Qui morbos abigant, qui Coelum et sidera monstrent, Imperat acciri : Mercês proponitur illis Magna ; sed est maior Regi placuisse benigno Gloria. Complutum linquunt, Sequanaeque âuenta: Oenique et Aoniae linquunt Helicona Sorores. Regia sic docto Conimbriga vértice Coelum Tangit et immensis jam civibus aucta superbit.

Manuel da Costa De Conimbricensi Academia Cármen.

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A morte inesperada cortou-lhe a aspiração de o ver prosperar, mas ainda lhe deixou tempo de indicar o humanista-philosopho João Gélida, para lhe succeder em Bordéus e Diogo de Teive em Coimbra, como que fazendo um tes- tamento profissional em que iam compromet- tidos os interesses e as esperanças da sua obra educativa.

No tumulo do illustre pedagogo, uma das mais altas incarnações do humanismo fran- cês, a sua memoria recommendava-se á pos- teridade nestes versos que o mau azar apagou ha muito :

Júlia Pax genuit, rapuit Conimbriga corpus Excoluit mentem Gallia, Olympus habet.

Dom João parecia louco de enthusiasmo Mecenas gigantesco, irrisoriamente condemnado a destruir a própria obra.

O seu nome era venerado nos centros mais cultos do estranjeiro e o grande mathemático João Fernel dedicava-lhe a Cosmotheoria em que se exaltava a acção dos portugueses no descobrimento da terra.

Censuravam-no ministros pelo dispêndio com escolas, emquanto faltava dinheiro para os sol- dados da conquista.

Corria fama dos estudos de Coimbra, as linguas clássicas falavam-se e escreviam-se como

28 Coimbra doutora

idioma pátrio, os sábios permutavam-se em toda a Europa, universalizados na cultura, vinham fidalgos aprender ao lado dos filhos do povo e a Universidade de Coimbra era a primeira das Espanhas.

ATHENAS ESSE CREDIMVS

ATHENAS ESSE CREDIMVS

Vimos rir, vimos folgar vimos coufas de plazer vimos zombar, apodar, motejar, vimos trouar trouas que eram para ler.

Garcia de Resende Miscelânea.

Meados do século xvi, dia lectivo. Mal rompia a manhã, os sinos dos mosteiros despertavam para ma- tinas, além do rio \ ainda a cidade dormia na paz doirada do outomno e os escolares accendiam as candeias para as lições de prima.

Dum e outro lado acordavam rumores, vozes madrugadoras soando claro, na humidade do ar, pelas viellas.

Martelavam ferreiros e na extensão desegual da casaria perpassava uma confusão sonora, como um bocejo da cidade toda.

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Clareava.

Ao sol tremulo, adensado de vapores, aloi- rejam as cantarias do castello de Martim de Freitas e quem subisse ao topo ameado da fortaleza, via do alto quebrar-se aos ân- gulos a linha da muralha torreada a cingir ainda o espaço para occidente do burgo me- dieval.

Para o largo, os saudosos campos do Mon- dego, mar de verdura tranquillo por onde os olhos correm sem asperezas, até ás brumas cinzentas do mar.

Doutra banda, a curva ritmica dos montes, a prolongar-se brandamente até se perder no azul da cordilheira, diluida em nuvens, ao fundo do horizonte.

Nas encostas, a paisagem desenrolando-se, a meditar na ramagem cónica dos ciprestes, meló- dica na graça paga dos bosques de loireiro e nas vegetações da cultura rural.

Ali perto, aonde alcança a sombra dum torreão, o arco tosco do Paço da Alcáçova, por onde vão atravessando hirtas e leves no andar, figuras encapuzadas de monjes.

Da torre da cai, lento e lento, o toque para o coro e continua a ouvir-se uma toada de sinos, constante, pelos ares, quebrando-se de longe nos echos, missas aos centos, piedade fervorosa a encher as igrejas.

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Reza Coimbra inteira que com os annos transpôs as muralhas, alongando-se rio abaixo, por onde as casas marginaes reflectem os perfis prismáticos.

Próximo das nove, a sombra dos quadrantes, marcando horas em séculos de paciência inclina-se ligeiramente nos muros de vedação dos velhos palácios.

Hora de tevtia a que ninguém falta. Esco- lares, ruidosamente passam, aos grupos, cru- zam-se, chamam-se de cada lado e vão subindo para a Alcáçova.

Manteu talar, enrocado modesto ou collares chãos, loba a meia perna, borzeguins intei- riços e na cabeça, barrete redondo ou de cantos.

Movimento e vida, do rosto a transluzir-lhes o enthusiasmo que a Renascença intornava nos espíritos, na sede renovadora de paganismo espiritual.

Desenrolam-se pergaminhos : vão theolo- gos ouvir commentar a Escriptura ao doutor Affonso do Prado, os canonistas teem um sábio que recentemente trouxera de Salamanca a intervenção de Carlos V, o doutor Aspilcueta Navarro e ha em Coimbra uma admiração quasi idolátrica pelo nosso doutor António Luís, o Grego, que lia Galeno e era o precursor de Newton.

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E aquellas centenas de moços a quem os estatutos impunham sob multa, a obriga- ção de falar latim ou grego, accentuavam as velhas linguas com a sobriedade clássica de patrícios entre as columnas jónicas dum atrium.

Findavam as aulas após a hora de lei- tura e ás portas quedavam os mestres, espe- rando as perguntas, duvidas e reflexões dos estudantes que saíam enfiando os barretes, uns sobre outros, em movimentação quasi febril, longas cabelleiras poisando nos abanos brancos do manteu uma chusma rumorosa que logo vai dispersando fora das portas do Arco.

Na véspera das festas religiosas, á lição de prima, os bedéis com as maças de prata per- corriam os Geraes, annunciando o préstito que da Capella onde todos se reuniriam na manhã seguinte, havia de seguir para os collegios ou igrejas da cidade a assistir ás missas e pre- gações.

A Universidade mantinha quasi desde o principio, uma forte organização corporativa, facto nada estranho, antes muito harmónico com as tendências associativas da época. O velho Studium transformara-se na Univer- stías magistrum et scholarium, á maneira das

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irmandades peninsulares ou da Giiild ger- mânica cuja jerarquia foi adoptada : rector, conciliarius.

No ritualismo, transparecem reminiscências medievaes da cavallaria : a imposição do bar- rete e da murça (manumissao), os graus, o pagem, o annel e o beijo fraterno, a accolade symbolica das festas da investidura.

Para Coimbra passava a confraria de Nossa Senhora da Luz fundada pelo Infante Dom Henrique e mantida á custa das esmolas dos associados, lentes e estudantes que os mor- domos esperavam á porta das aulas com caixas para o óbulo.

Com a apparencia dum intuito puramente piedoso, esta instituição traduzia a necessidade de aproximar mestres e discípulos e destinava- se a auxiliar materialmente os sócios em caso de doença para que o boticário da Universi- dade dispensava remédios á semelhança das irmandades dos mesteres dos séculos ante- riores.

A confraria incorporava-se sempre nos prés- titos religiosos que eram muitos e onde tinham logares próprios os collegios ou escolas meno- res, compreendidos nos privilégios da Univer- sidade.

A frente do pallio, os capellães, a cruz da Capella, moços em sobrepelliz com ciriaes e

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a seguir, os collegios ordenados pela antigui- dade e com uniformes de diversa cor.

Detrás, no logar de honra, o reitor e Junto delle o guarda das escolas com a vara para deter a gente, o secretario è o mestre de cere- raonias com o seu bordão de prata e os bedéis com as maças aos hombros.

Emquanto o cortejo caminha, o sino tange demoradamente.

Puniam-se com perda d'anno e até exclusão dos cursos, os alunos que faltassem volunta- riamente a estes actos e nenhum podia prestar prova final sem certificar ter cumprido o dever religioso da confissão pela Páscoa, Pentecostes, Todos os Santos e Natal.

Semanalmente, fazia-se a feira dos estudan- tes, no local assim chamado ainda hoje, os vendedores eram obrigados a expor os produ- ctos para cima da Porta de Almedina e antes das duas horas, apenas era permittido fazer compras ás pessoas privilegiadas da Universi- dade : mestres, estudantes, officiaes.

Para garantir o direito da preempçao, vigia- vam a feira dois almotacés a quem incumbia também distribuir a carne nos açougues da Universidade.

Percorriam todo o mercado com as varas vermelhas da sua auctoridade e tinham sob si

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O meirinho e seus homens para evitar que algum vendedor levantasse as taxas ou preços das mercadorias.

De três em três annos, quatro taxadores, dois da Universidade e dois da cidade, taxa- vam as moradas do reitor, lentes, estudantes e demais pessoas universitárias. Por um edi- tal, annunciava-se que tal rua ou bairro seria taxado e na véspera deitava-se pregão para que todos os moradores ficassem nas casas para as mostrarem.

Bastante amplos eram estes privilégios de moradia para a simples vontade dum privile- giado fazer anullar contractos licitos e desalo- jar arrendatários, ainda que por mais de dez annos.

O senhorio a quem o estudante prestava boa fiança, recebia a importância da renda ás prestações e não podia em caso nenhum aumenta-la ou exigi-la junta, sob pena de perde-la.

Os estatutos eram severos e inexorável a justiça do foro académico (ecclesiastico) que os papas continuaram confirmando.

Nos trajes não se podia usar seda, eram pro- hibidos os collares de renda ou trancinhas, as capas de capello cerrado, os golpes, entreta- Ihes, os piques, os botões ou fitas nas botas e

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sapatos. As transgressões eram punidas com a perda do vestuário ou calçado e com multa especial, metade da qual se destinava ao accu- sador para aguçar a vigilância.

E exerciam-na meudamente á ordem do rei- tor, todos os officiaes para que nenhum estu- dante tivesse besta de sella não recebendo de renda annual cento e cincoenta mil reis ou mais \ para que a nunca levassem consigo mais que um moço e a cavallo, três, nem pos- suíssem cães e aves de caça, nem vivessem em casa com mulheres suspeitas, cuidadosamente prohibidas de habitar a parte alta da cidade. Era-lhes vedado usar armas ofFensivas ou defensivas, sequer faca ou canivete : sendo- Ihes encontradas, perdiam-nas em beneficio do meirinho que ainda applicava a multa res- pectiva.

Tanto rigor de prohibições deixa suppôr que abusos frequentes ultrajassem os estatutos, indomáveis como seriam tantos moços com hábitos e tradições guerreiras e tam distan- ciados da condição humilde do escolar clérigo. O estudante deste periodo é brigão e espada- chim, arruaceiro, ousado e de noite, em sorti- das perigosas, bate-se valentemente na sombra das viellas em duellos sangrentos.

O exemplo vinha de Santa Barbara onde os escolares traziam occultos debaixo da capa,

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a espada e o bacamarte, e das universidades espanholas em que os conflictos tomavam as- pectos gravíssimos.

De Camões se sabe que era destemido duellista e que teve um encontro célebre na praça de Sansam por motivos de amor.

Temos noticia de que nas universidades de Espanha quasi idênticas prescripções eram observadas na disciplina escolar.

Em Salamanca, por exemplo, nenhum estu- dante podia dormir em cama de seda, nem possuir colgaduras e calças de tela de oiro e prata, cominando-se aos transgressores a pena de perda dos objectos e a de desterro ou expulsão perpetua da universidade.

Para não ser illudido o rigor da observância, ordenava-se que os alfaiates e sapateiros que fizessem aos estudantes vestuário ou calçado, em condições reprovadas pelos estatutos, pe- gassem seis mil maravedis.

O luxo da seda limitava-se ás guarnições: « qualqiíier estudiante pueda traer loscollares de la loba, maníeo e sa/o, guarneiidos com seda ».

Para as escolas, todos tinham de ir a pé, porque não lhes era permittido utilizar qual- quer meio de locomoção carro, liteira ou cavallo.

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O rigor dos estatutos salmanticenses não resistia á paixão taurina que obrigava o legis- lador a feriar os dias de corrida : « los dias de toros no se lée poi" todo el dia, y no quitan el asiíeto » (i).

A severidade da legislação espanhola para os perturbadores dos bairros escolares, ia muitas vezes até á pena de morte : per guiam moriturus sine omni remédio suspendatur (2).

Na universidade de Huesca e noutras não havia traje obrigatório: usavam o que queriam, contanto que fosse honesto, sem cores vivas, seda ou ornatos caros.

Em certos dias do anno, especialmente pelos Reis Magos, organizavam-se em Coimbra fes- tas nocturnas, as soiças, em que os estudantes appareciam com os fatos do avesso ou cober- tos de farrapos, mascarados e livres, por antiga praxe, de toda a intervenção das auctoridades.

Havia excessos e abusos com largueza que uma provisão regia (1541) cohibia, não per- mittindo as soiças para o futuro, por serem muito dispendiosas e impróprias de estudantes.

(i) Estatutos hechos por la muy insigne universidad de Salamanca, 1625.

(2) La Fuente, Historia de las Universidades. Uni- versid. de Lerida, tom. i, pag. iSj.

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e ainda outras providencias se succederam sem resultado efficaz.

As soiças morreram com o tempo, mas delias devem derivar ainda as latadas no dia do ponto que nalguns annos téem resurgido de improviso, ruidosamente (i).

Algumas festas do Calendário religioso Corpus Christi, Natal,